Resenha | Cujo, de Stephen King (1981)
O thriller mais pesado de Stephen King que fez o escritor se arrepender do desfecho.
Quando a gente fala em Stephen King, é fácil pensar em palhaços assassinos, hotéis amaldiçoados ou garotos com poderes telecinéticos. Mas o que faz do King um mestre absoluto do terror é algo muito mais sutil: sua capacidade de encontrar o horror onde ele mora de verdade: no cotidiano.
Stephen King nasceu em 1947, no Maine, e desde os anos 70 vem redefinindo o gênero do terror. Seus livros não se contentam com sustos, mas perfuram camadas de realidade, mergulham em traumas, vícios, medos da infância e da vida adulta. Com mais de 60 romances e centenas de contos, ele criou um verdadeiro universo interligado. Cujo, lançado em 1981, é um dos capítulos mais brutais e realistas dessa mitologia.
Publicada em 8 de setembro de 1981, Cujo chegou ao público em um momento tenso da carreira do autor. King estava no auge da fama após o sucesso de livros como O Iluminado e A Hora do Vampiro (hoje com o nome Salem), mas pessoalmente enfrentava o vício em álcool e cocaína. Ele já revelou que nem se lembra de ter escrito partes de Cujo (além de outras obras), o que, ironicamente, combina com o tom frenético e desesperado da obra.
A história se passa na fictícia cidade de Castle Rock, parte do universo compartilhado do autor, onde o extraordinário se mistura ao banal. A trama gira em torno de um cachorro da raça São Bernardo, Cujo, que, após ser mordido por um morcego infectado com raiva, passa por uma lenta e dolorosa transformação. De animal dócil e brincalhão, Cujo se torna um predador mortal, uma criatura dominada por dor, alucinação e instinto de ataque. Mas o mais aterrorizante é o que leva uma mãe e um filho a ficarem presos dentro de um carro, sob o sol escaldante, cercados por esse cão assassino.
Antes de o sangue começar a escorrer, o que Stephen King constrói é uma bomba-relógio emocional. Ele nos apresenta a família Trenton, com Donna, Vic e o pequeno Tad. O casamento de Donna e Vic está por um fio, balançado por uma traição recente. Vic, por sua vez, encara uma crise profissional grave. Tad, o filho do casal, sofre com pesadelos e o medo de um monstro no armário. Em paralelo, acompanhamos os Cambers, donos de Cujo, uma família marcada por uma violência doméstica velada, onde o abuso está presente não só com tapas, mas com silêncios e desprezo. King mergulha nesses dramas íntimos e transforma cada fissura emocional em combustível para o horror.
É nesse clima de tensão familiar e isolamento emocional que a tragédia acontece. Cujo não é um monstro sobrenatural: ele é um produto da natureza, da raiva, literalmente e simbolicamente. A doença avança em seu corpo lentamente, corroendo seu cérebro e transformando-o em uma figura trágica. Em certos momentos, o próprio cão tem pensamentos que revelam sua confusão e sofrimento. Ele não queria ser um assassino. Ele não entende o que está acontecendo. É uma criatura atormentada, tanto quanto aqueles que ele ameaça.
E é aqui que Cujo acerta em cheio: no terror psicológico que não precisa de fantasmas ou demônios. O cenário mais aterrorizante da história é um carro em que Donna e Tad ficam presos, cercados por um animal enlouquecido, em pleno verão. O calor é sufocante, a sede é real e a tensão cresce a cada página. Stephen King usa a claustrofobia como ferramenta narrativa e transforma a espera em agonia. Os capítulos finais são quase insuportáveis, no melhor sentido possível.
Os temas que atravessam o livro são vários. O isolamento, tanto físico quanto emocional, é o principal. Donna está sozinha no momento mais desesperador da sua vida. O medo da morte do filho a consome e ela precisa cavar dentro de si uma força que nem sabia que tinha. Aqui, King nos mostra uma maternidade crua, visceral, onde o amor se transforma em luta pela sobrevivência.
Outro tema central é o da fragilidade da vida comum. A família Trenton poderia ser qualquer família. Eles não são especiais, nem amaldiçoados. O que os destrói é uma sequência de pequenas decisões, mentiras, descuidos e... azar. King, aliás, brinca com essa ideia de destino e acaso ao extremo. Tudo poderia ter sido evitado, mas nada foi.
Do ponto de vista narrativo, Cujo é engenhoso. King alterna múltiplas perspectivas, com Donna, Vic, o mecânico Joe Camber, o amante Steve Kemp, o xerife Bannerman e até mesmo Cujo. Isso constrói uma teia de tensões e expectativas que culminam em um clímax devastador. E é impossível não falar sobre o final, que é o soco final, seco e cruel, que deixa o leitor sem ar. O próprio Stephen King já declarou que se arrepende dessa escolha. Mas, de certo modo, ela é coerente com a proposta do livro: um retrato incômodo da impotência humana diante do acaso.
Cujo venceu o British Fantasy Award de Melhor Romance em 1982, mas sua recepção crítica, na época, foi dividida. Alguns achavam o livro cru demais, pessimista demais. Hoje, ele é visto como um exemplo poderoso de terror psicológico sem apelações sobrenaturais. Uma aula de como o cotidiano pode esconder monstros e de como qualquer um pode ser levado ao limite.
Cujo é mais do que a história de um cachorro assassino, mas uma metáfora sobre tudo o que a gente não controla. Sobre como a vida pode virar um pesadelo a partir de uma simples ida à oficina. E sobre como o horror, às vezes, não vem do escuro, mas do calor, da sede, da espera e da solidão.
Se você está pronto para um livro que dói mais do que assusta, Cujo é pra você. Mas prepare-se: o monstro aqui não tem sete cabeças, ele tem quatro patas, um focinho quente e já foi um bom cachorro.